Projetor na tela, gente na praça e um repertório de documentários produzidos por indígenas, quilombolas, mulheres e outras pessoas ligadas a movimentos sociais. Essa tônica, que não é sentida no Recôncavo há cerca de dois anos, ganha novos contornos no início do próximo mês, com o retorno do festival CachoeiraDoc.
Gente na praça ainda não vai ser possível, por conta da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) e das restrições que estão postas, mas os contornos que norteiam a curadoria e a ligação com as comunidades vizinhas seguem os mesmos. Isso é o que garante Amaranta César, professora de Cinema e Audiovisual e uma das coordenadoras do evento desde a primeira edição, em 2009.
“Agora, depois de um tempo de elaboração, do entendimento de quão longo seria esse período de quarentena, os esforços foram se juntando para que minimamente as pessoas não fossem deixadas para trás. Porque em Cachoeira, muita gente não tem acesso ou tem, de modo precário, à internet. As pessoas para quem a gente sempre fez o CachoeiraDoc não poderiam ficar para trás. Essa decisão não foi fácil porque o que a pandemia faz é explicitar as desigualdades que já existem e a gente nao queria ignorá-las”, ressalta a professora.
Os dois anos de hiato chegaram a ser quebrados de maneira breve com a realização experimental, em maio deste ano, de um outro evento virtual, que ainda não era o CachoeiraDoc, batizado sugestivamente como “Festival impossível, curadoria provisória”, mas que aconteceu no mesmo mês previsto inicialmente para o encontro.
“A gente fez um evento para não passar em branco, que era pra justamente dizer ‘vamos fazer esse evento online, vamos disponibilizar filmes, mas isso não é um festival’”, explica Amaranta, acrescentando que naquele momento, o entendimento era de que, por conta de toda a potência de relação com a história e o território, era impossível fazer algo semelhante, mas precisavam de uma ação de mobilização naquele momento.
Segundo ela, pensar numa edição online mais encorpada só se tornou mais concreto agora, devido a um reestabelecmento da comunidade estudantil da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde o festival foi gestado desde a primeira edição. “Fazer um festival online é também uma maneira de fechar um ano difícil e afirmar que ainda estamos aqui”, evidencia.
Para aproximar-se do público de Cachoeira, a organização pensa em ampliar a presença em diferentes meios para atingir também quem não tem acesso à internet. A ideia, explica a coordenadora, é promover ações pontuais como a oferta de um cardápio de filmes no site para que possam ser escolhidos pela própria população, um período mais extenso de disponibilização e realização do evento, e sessões para famílias da sede do município e na comunidade quilombola de Santiago do Iguape, na zona rural.
“A questão agora é atingir o qualitativo, não o quantitativo, de forma pontual, como numa acupuntura. Também teremos oficinas para estudantes do ensino médio de Cachoeira e São Félix por WhatsApp chamada de ‘ZapDoc’, que é justamente para oferecer conteúdos rápidos e sintéticos e ensinar a captação de imagens por celular, a montar pelo celular, a iluminar, a melhorar a captação de som, de forma muito prática e de forma mais barata, já que não demanda muitos dados”, completa Amaranta César.
HIATO E DESAFIOS DA RETOMADA
Quando o CachoeiraDoc foi descontinuado, em 2018, o cenário da política de editais a nível estadual não era propício para a realização de eventos como o festival de documentários. Apontando a falta de apoio para que uma nona edição acontecesse naquele ano, a organização divulgou um comunicado em que explicava o momento que estavam atravessando.
Nem os editais federais poderiam ajudar. Critérios como uma contrapartida financeira e a cobrança de ingressos impossibilitaram qualquer tentativa de concorrer aos certames disponíveis e captar recursos.
“Um festival de documentários, que é um cinema minoritário e contra-hegemônico, que não vende exatamente ingressos, numa cidade que também só tem um cinema pequeno e com uma população majoritariamente de baixa-renda, você imagina que realmente não está no nosso alcance concorrer a esse tipo de política. Ficamos dois anos sem realização do evento e quando finalmente houve uma retomada dos editais a gente concorreu, ficou no primeiro lugar em nossa categoria e quando estávamos retomando o festival fomos surpreendidos pela pandemia”, discorre a professora Amaranta.
Agora, com a retomada virtual, espera-se que as perspectivas elaboradas no decorrer das últimas oito edições sigam em continuidade. “Toda nossa experiência de realização do fetival nos mostrou que a relação dos filmes que a gente exibiu com a cidade tinha perspectivas críticas, leituras históricas, possibilidades entre artistas, realizadores e pesquisadores que inclusive afetaram o próprio cinema brasileiro”, argumenta, completando que, na sua avaliação, a vinculação com um passado rico, mas também traumático do processo colonial e escravagista da cidade, e a uma realidade de universidade plural são muito desejáveis para pensar criticamente o cinema.
NARRATIVAS NA TELA E FORA DELA
A presença de realizadores, palestrantes, produtores, pesquisadores e outros nomes do cinema e ligados com as temáticas é uma das marcas das mesas e dos filmes exibidos nas edições do CachoeiraDoc. Ao Bahia Notícias, a professora Amaranta César disse que a preocupação sempre foi a de pautar a “representação e a representatividade”.
“Convidamos muita gente importante do cinema negro, do cinema indígena, do cinema ligado aos movimentos sociais, do cinema das lutas urbanas e rurais”, diz, avaliando que, por si só, o gênero documental já apresenta a possibilidade de ver histórias a partir de outro ponto de vista. “Ele nos revela personagens e facetas do mundo de um jeito que a gente não via antes. Nesse sentido, buscamos [ao longo da história do CachoeiraDoc] documentários que tanto experimentassem formas, quando evidenciassem narrativas que as mídias tradicionais não mostravam”.
Nomes como o Cacique Babau, a ativista Makota Valdina e membros de comunidades tradicionais como os Guarani-Kaiowá e moradores do Quilombo Rio dos Macacos já estiveram nas atividades do festival CachoeiraDoc.
Valdina é a homenageada do evento deste ano. Morta em março de 2019, aos 77 anos, sua participação em um debate na última edição motivou a escolha. “Makota Valdina esteve em um seminário no festival passado e que fez parte da abertura em uma das mesas, que pensava as relações do cinema com as religiões de matriz africana. Ela disse uma coisa que finalizou a fala dela e nos atravessou muito: ‘Em momentos como esse, a gente tem que estar na luta como água, porque a água vai pingando e ninguém tá vendo ela pingar, daqui a pouco, quando você olha, tá tudo alagado’, justificou Amaranta.
“Aquilo era uma lição muito além do cinema, para o cinema, mas para a vida. Era uma forma incrível de entendimento do que a gente vivia. Então, [a homenagem] tem a ver com essa lição de cura e de ação, mas também com uma pessoa que era educadora, além de ativista política que defendia os direitos das mulheres, das populações negras e os direitos ambientais. Essa integridade de Makota Valdina é um exemplo. Dizemos que o futuro está na ancestralidade e por isso a homenageamos”, encerra.