De 1° de janeiro a 30 de junho de 2020 foram registradas 771 ocorrências policiais por estupro contra crianças e adolescentes com idades até 17 anos na Bahia. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-BA), no mesmo período ainda foram registradas 47 tentativas de estupro contra a mesma faixa etária, assim como 17 casos de divulgação de pornografia com crianças e adolescentes e outras nove por submissão a práticas de prostituição ou a exploração sexual.

Se comparados com o mesmo período de 2019, os números indicam redução em todas as tipificações. No entanto, o que poderia ser motivo de celebração é visto como sinal de alerta para uma realidade de subnotificação, impulsionada pela nova dinâmica de vida imposta pela pandemia do novo coronavírus.

Naquele ano foram registrados, somente no primeiro semestre, 1.054 casos de estupro; 63 tentativas de estupro; 15 ocorrências por submissão à prostituição ou exploração sexual e outras 20 ocorrências por divulgação de pornografia com crianças e adolescentes.

A avaliação de Laíssa Rocha, defensora pública que atua na Especializada de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria da Bahia, a tendência é que aumente o número de ocorrências durante pandemia.

“É muito provável que haja subnotificação. A gente está em um momento de isolamento social e suspensão das aulas, então essas crianças e adolescentes estão confinadas em seus lares e junto com seus possíveis agressores. Pelo que a gente sabe, e isso é estatística, que as violências contra crianças e adolescentes são praticadas por pessoas muito próximas e familiares. Fora isso, a escola é uma importante fonte de denúncia. Muitos casos vem à tona na escola”, avalia Laíssa.

“Infelizmente, a tendência é aumentar essa violência por estarmos em tempo de pandemia. Também para essas denúncias virem à tona acaba sendo um pouco mais complexo”, endossa a defensora.

Ela observa também que, muitas vezes, quando a vítima manifesta mudança de comportamento é o professor que está ali diariamente que acaba percebendo e servindo como o canal de denúncia.

Quem também alerta sobre as mudanças de comportamento em uma criança submetida a abusos sexuais é a psicóloga Marta Souza. “As pessoas tem que estar atentas a mudanças de comportamento, dificuldade de aprendizado, retrocesso de ensino, ‘ela fazia isso e parou’, também quando a criança não acompanha os colegas. São sintomas sutis, mas a mudança de comportamento é um sinal de que algo está errado e o alerta deve ser acendido”.

PERFIL DO AGRESSOR

Questionada sobre o perfil dos agressores, a SSP-BA afirmou não possuir dados consolidados que confirmem a tendência já revelada por reiteradas pesquisas.

“A gente não pode perder de vista que, infelizmente, os dados apontam que a maior parte dos agressores são pessoas muito próximas à vítima, ou até mesmo seu genitor. Eu, enquanto defensora que atuo na área da infância e juventude já há alguns anos e atuo nesta área de proteção de criança e adolescentes, recebo, infelizmente, com certa frequência situações de abuso sexual praticados pelo pai”, diz a defensora.

A DENÚNCIA

Para que ocorra a devida apuração de crimes de violência sexual é necessária a formalização de um denúncia às autoridades policiais. Em Salvador, as ocorrências devem ser registradas junto à Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes Contra a Criança e o Adolescente (Dercca). Já no interior do estado, o registro pode ser feito na unidade mais próxima do fato ocorrido.

Laíssa explica ainda que, nos casos em que a agressão é realizada pelo genitor ou genitora, o encaminhamento ao fato é dado a partir do ajuizamento de ação por duas vertentes, no âmbito Cível e na Vara da Infância e Juventude.

“Tem essas duas vertentes: uma apuração criminal, do fato, do crime, que vai ensejar uma instalação de inquérito policial e, ao final do inquérito, o encaminhamento para o MP [Ministério Público] que pode oferecer essa denuncia ou não. Uma vez oferecendo essa denúncia, vai se iniciar uma ação criminal contra esse agressor, e ao final dessa ação criminal, se houver provas suficientes, esse agressor vai ser condenado e preso. Então vai haver punição no âmbito penal”.

Já a ação movida junto à Vara da Infância e Juventude tem como propósito resguardar a criança ou o adolescente do convívio com o agressor.

“Nesse momento mesmo estou com três casos em andamento para agilizar essa ação contra esse pai para que ele perca os poderes de pai e essa criança tenha resguardada sua integridade física e psíquica afastada desse pai. Porque uma coisa é o processo criminal que está acontecendo. Muitas vezes esse pai responde o processo criminal em liberdade, então, teoricamente, ele poderia ter acesso a essa criança se a gente não evitar esse acesso por meio dessa ação”, relata Laíssa.

A defensora explica que quando chega a notícia do fato na delegacia, quando se trata de crime praticado por pai ou mãe, a própria delegacia costuma orientar a busca pelo apoio da Defensoria Pública.

“A gente também tem um serviço chamado ‘Serviço dizer’, a que se presta assistência multidisciplinar a essas vítimas, com psicólogo, assistente social. Quando a violência ocorre por parte do genitor, eles orientam que procurem a Defensoria para que a gente ingresse com essa ação de destituição do poder familiar. Inclusive, a gente apresenta indícios de prova e aí o juiz é capaz de suspender logo o poder familiar antes mesmo de ouvir esse agressor para que essa criança tenha sua integridade física resguardada”, acrescenta Laíssa.

“E nas outras situações, quando há conivência da mãe ou quando a violência é praticada pela mãe, ou o pai busca ou avós ou outros membros da família que acaba se responsabilizando pela criança diante daquela situação de violência ocorrida”, completa.

Outras formas de noticiar as múltiplas violências contra crianças e adolescentes são Conselho Tutelar e o Disque 100. Uma vez captadas por estas iniciativas, as denúncias são encaminhadas aos órgãos competentes.

PREVENÇÃO

A Defensoria Pública da Bahia atua também na vertente de prevenção aos crimes de violência contra crianças e adolescentes. Um dos mecanismos utilizados no processo é a cartilha “Abuso sexual contra criança e adolescente – não deixe acontecer em sua casa”, que pode ser acessada gratuitamente no site da instituição. O trabalho compreende ainda a formação por meio de palestras, discussões temáticas das mais diversas formas, tendo como foco a educação da população.